sexta-feira, 9 de maio de 2014

Saúde como Direito: o conceito ampliado de saúde
Analisemos agora o conceito de saúde formulado na histórica VIII Conferência Nacional de Saúde (VIII CNS), realizada em Brasília, no ano de 1986. Também conhecido como ‘conceito ampliado’ de saúde, foi fruto de intensa mobilização, que se estabeleceu em diversos países da América Latina durante as décadas de 1970 e 1980, como resposta aos regimes autoritários e à crise dos sistemas públicos de saúde.
O amadurecimento desse debate se deu em pleno processo de redemocratização do país, no âmbito do movimento da Reforma Sanitária brasileira e representou uma conquista social sem precedentes ao transformar-se em texto constitucional em 1988. [5] Recordemos seu enunciado:
Em sentido amplo, a saúde é a resultante das condições de alimentação, habitação, educação, renda, meio ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade, acesso e posse da terra e acesso aos serviços de saúde. Sendo assim, é principalmente resultado das formas de organização social, de produção, as quais podem gerar grandes desigualdades nos níveis de vida. (Brasil, 1986: 4)
A força de seus postulados procura resgatar a importância das dimensões econômica, social e política na produção da saúde e da doença nas coletividades. Contrapondo-se à concepção biomédica, baseada na primazia do conhecimento anatomopatológico e na abordagem mecanicista do corpo, cujo modelo assistencial está centrado no indivíduo, na doença, no hospital e no médico, o texto defende como princípios e diretrizes para um novo e único sistema de saúde a universalidade, a integralidade, a eqüidade, a descentralização, a regionalização e a participação social. Alinha-se a uma corrente de pensamento crítico que tem expressão em diversos autores na América Latina.
Para Laurell (1997: 86), a saúde é vista como ‘necessidade humana’ cuja satisfação “associa-se imediatamente a um conjunto de condições, bens e serviços que permitem o desenvolvimento individual e coletivo de capacidades e potencialidades, conformes ao nível de recursos sociais existentes e aos padrões culturais de cada contexto específico”.
A saúde, no texto da Constituição de 1988, reflete o ambiente político de redemocratização do país e, principalmente, a força do movimento sanitário na luta pela ampliação dos direitos sociais: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação” (Brasil, 1988:37). O grande mérito desta concepção reside justamente na explicitação dos determinantes sociais da saúde e da doença, muitas vezes negligenciados nas concepções que privilegiam a abordagem individual e subindividual. [6].
Sem desmerecer sua importância histórica, alguns críticos fazem ressalvas a este conceito. Para Nascimento (apud Caponi, 1997: 302), esta concepção situa a saúde e a enfermidade como fenômenos superestruturais que reproduzem, como uma resultante ou como um reflexo, uma única dimensão considerada como determinante absoluta: a base sócio-econômica. Assim, aquela que se propõe como a forma mais progressista e inovadora de conceituar saúde pode acabar por resultar politicamente pouco operativa ou simplesmente inibidora de ações efetivas.
De acordo com esta análise, o conceito ampliado esvaziaria a referência às especificidades biológica e psíquica da enfermidade. De forma semelhante ao conceito da OMS, dada a sua amplitude e extensão de sua atuação, correria o risco de ver medicalizados todos os âmbitos da existência (trabalho, alimentação, tempo livre, transporte etc).
Esta perspectiva encontra eco em meio a autores que mais recentemente têm estabelecido uma crítica ao movimento da promoção da saúde. Reconhecida como uma das mais instigantes propostas para operacionalizar o conceito positivo da saúde – desde de sua reconfiguração a partir do “Informe Lalonde”, no Canadá, até os dias de hoje – a promoção da saúde vem ganhando espaço tanto nos debates acadêmicos (Buss, 2003; Czeresnia & Freitas, 2003; Lefévre & Lefévre, 2004; Teixeira, Paim & Villasbôas, 2002) quanto nas políticas públicas mais amplas (Brasil, 2006).
A reorientação dos sistemas de saúde, um dos campos centrais de ação desta perspectiva de acordo com a Carta de Otawa, se expressa através da formação dos profissionais e, principalmente, pela atuação intersetorial. Para Lefévre e Lefévre (2004) e Carvalho (2005), no entanto, ao definir como instância privilegiada a intersetorialidade, a política de saúde deixaria de ter um objetivo setorial específico e diluir-se-ia como pseudomandatária de todas as demais políticas. Para Lefévre e Lefévre (2004), ao afirmar que a saúde é responsabilidade de todos os setores (habitação, emprego, renda, meio ambiente etc), a perspectiva da intersetorialidade esvaziaria a ação específica do setor saúde em detrimento de ações políticas globais com alto grau de generalidade.
O risco do uso equivocado do conceito de ‘políticas públicas saudáveis’ já ficou demonstrado pelo caráter abusivo com que se procurou revestir políticas clientelistas em anos eleitorais, representando desvio de parcelas significativas do recurso destinado ao setor saúde.
Contudo, submetendo o conceito ampliado da VIII CNS às teorizações de Canguilhem, Caponi reconhece que, ao estabelecer o entendimento da saúde como uma ‘margem de segurança para suportar as infidelidades do meio’, o autor concede uma certa primazia à dimensão individual do fenômeno de saúde-doença, excluindo de suas preocupações os determinantes sociais: “Poderia-se argumentar que ao falar da necessidade de integrar essas infidelidades do meio como um elemento indispensável para tematizar a saúde, se corre o risco de legitimá-las em lugar de combatê-las” (Caponi, 1997: 304).
É importante diferenciar a inevitabilidade do adoecimento, quando falamos de doenças e agravos cuja compreensão sobre seus determinantes e a capacidade de intervenção ainda são limitadas – o caso de muitas viroses, por exemplo –, da perigosa naturalização de condições de vida adversas que, sabidamente, conferem maior vulnerabilidade a diferentes grupos e extratos sociais.
Avançando de forma dialética em direção à superação das dualidades indivíduo/coletivo e sujeito/estrutura, Caponi propõe a extensão do conceito canguilhemiano à esfera social. Saúde, nesse sentido, estaria referida à capacidade de indivíduos e coletivos de tolerância com as infidelidades do meio.
Exemplificando, no caso da tuberculose, podemos observar que os organismos menos saudáveis são aqueles que possuem menor capacidade (falta de alimentação, de moradia adequada, de educação, incapacidade de autocuidado etc.) para tolerar e enfrentar esta ‘infidelidade’ (neste caso, o bacilo de Koch) que seu meio apresenta. Em síntese, isto significa que “capacidade de tolerância para enfrentar as dificuldades está diretamente vinculada a valores não só biológicos, mas também sociais” (Caponi, 1997: 305).

O princípio fundamental que articula o conjunto de leis e normas que 
constituem a base jurídica da política de saúde e do processo de organização do 
SUS no Brasil hoje está explicitado no artigo 196 da Constituição Federal (1988), 
que afirma: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante 
políticas sociais e econômicas que visem a redução do risco de doença e de outros 
agravos e ao acesso igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e 
recuperação”. Esse artigo traz, além da idéia central do direito à saúde como direito 
de cidadania, inerente a todos aqueles que sejam brasileiros, por nascimento ou 
naturalização, a noção de que cabe ao Estado a responsabilidade por promover a 
saúde, proteger o cidadão contra os riscos a que ele se expõe e assegurar a 
assistência em caso de doença ou outro agravo à saúde.

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